quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O teu olhar







Passam no teu olhar nobres cortejos,
Frotas, pendões ao vento sobranceiros,
Lindos versos de antigos romanceiros,
Céus do Oriente, em brasa, como beijos,
Mares onde não cabem teus desejos;
Passam no teu olhar mundos inteiros,
Todo um povo de heróis e marinheiros,
Lanças nuas em rútilos lampejos;
Passam lendas e sonhos e milagres!
Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres,
Em centelhas de crença e de certeza!
E ao sentir-se tão grande, ao ver-te assim,
Amor, julgo trazer dentro de mim
Um pedaço da terra portuguesa!
Florbela Espanca

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Utopias




















Qualquer caminho leva a toda parte.
Qualquer caminho
Em qualquer ponto em dois se parte
E um leva aonde termina a estrada
Outro é sonho.

Fernando Pessoa

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O Poeta e a Rosa








O Poeta e a Rosa     (e com direito a passarinho)



Ao ver uma rosa branca
O poeta disse: Que linda!
Cantarei sua beleza
Como ninguém nunca ainda!

Qual não é sua surpresa
Ao ver, à sua oração
A rosa branca ir ficando
Rubra de indignação.

É que a rosa, além de branca
(Diga-se isso a bem da rosa...)
Era da espécie mais franca
E da seiva mais raivosa.

– Que foi? – balbucia o poeta
E a rosa: – Calhorda que és!
Pára de olhar para cima!
Mira o que tens a teus pés!

E o poeta vê uma criança
Suja, esquálida, andrajosa
Comendo um torrão da terra
Que dera existência à rosa.

– São milhões! – a rosa berra –

Milhões a morrer de fome
E tu, na tua vaidade
Querendo usar do meu nome!...

E num acesso de ira
Arranca as pétalas, lança-as
Fora, como a dar comida
A todas essas crianças.

O poeta baixa a cabeça.
– É aqui que a rosa respira...
Geme o vento. Morre a rosa.
E um passarinho que ouvira

Quietinho toda a disputa
Tira do galho uma reta
E ainda faz um cocozinho
Na cabeça do poeta.

Vinicius de Moraes, Poesia Completa e Prosa,
Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1985

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Grupo Diálogos | música e poesia | 1 outubro - Ourém


DIA DA MÚSICA, ACOMPANHADO DE POESIA

Em Ourém, o dia 1 de outubro, “Dia da Música”, será acompanhado de Poesia.
Ao som do piano e do acordeão, ouvir-se-á, também,  a música das palavras. Para além de temas da música erudita e da world music, muitos temas originais acompanharão textos de alguns poetas da lusofonia.

O Grupo Diálogos apresentará dois dos seus projetos para público escolar, no cineteatro de Ourém, em duas sessões:

PELO CÉU VAI O POETA – 11:00  (alunos de 2º ciclo)
MIOPIAS, UTOPIAS E OUTRAS FANTASIAS… - 14:30 (alunos de secundário) 
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terça-feira, 4 de setembro de 2012

As Lágrimas do Poeta















Um poeta barroco disse:
As palavras são
As línguas dos olhos
Mas o que é um poema
Senão
Um telescópio do desejo
Fixado pela língua?
O voo sinuoso das aves
As altas ondas do mar
A calmaria do vento:
Tudo
Tudo cabe dentro das palavras
E o poeta que vê
Chora lágrimas de tinta



Ana Hatherlyin O Pavão Negro, 2003

O Universo





Uns dizem que é aberto
Outros que é fechado
Outros ainda que é plano

Cada um consoante o seu desejo

Para mim o universo
Tem a forma de um beijo



Pó de Estrelas, Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim

Os bichinhos do ouvido







Os bichinhos do ouvido
fazem de conta que escutam
o que os bichinhos de conta
fazem de conta que contam
assim tudo corre bem
para uns e para outros
nem uns dizem que são mudos
nem os outros que são moucos.
Alberto Pimenta 

sábado, 26 de maio de 2012

Não passarão - Miguel Torga


NÃO PASSARÃO 






Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!
Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.
Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.
Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!
Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!
Miguel Torga in Poemas Ibéricos, 1965

domingo, 6 de maio de 2012





MULHERES DO MEU PAÍS

Deu-nos Abril
o gesto e a palavra

fala de nós
por dentro da raiz

Mulheres
quebrámos as grandes barricadas
dizendo: igualdade
a quem ouvir nos quis.

E assim continuamos
de mãos dadas

O povo somos:
mulheres do meu país

Maria Teresa Horta





ENQUANTO


Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.

António GedeãoObra Poética, Lisboa, Ed. João Sá Couto, 2001

sábado, 14 de abril de 2012

Em Abril, poemas mil - 25 Abril 2012 - 21:30 - Alpiarça

Em Abril, poemas mil
Poesia e música – piano e acordeão

25 abril 2012 
21:30h
Alpiarça - salão do Clube Desportivo "Os Águias"
(entrada livre)

Sinopse:
Evocar o espírito de Abril, através da música, das canções e das palavras dos poetas, estabelecendo intertextualidades, cumplicidades e uma multiplicidade de diálogos é o propósito deste espetáculo.

Direção Artística | Acordeão | Piano  – Reymundo
Seleção e apresentação de textos  – Maria Figueiredo
Público-alvo: maiores de 6 
Duração: 1.h 20 m (sem intervalo)


Programa
Textos de:  
Alexandre O N’eill, António Gedeão, António Ramos Rosa, Ary dos Santos, Baptista Bastos,  Carlos Pinhão,  Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, José Gomes Ferreira, Manuel Alegre, Mário Cezariny, Mário Dionísio, Miguel Torga,  Natália Correia, Ruy Belo, Sophia de Mello Breyner,  entre outros…

Repertório musical - temas de:
Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, Manuel Freire, José Mário Branco, António Macedo, Sérgio Godinho, Paulo de Carvalho, Ermelinda Duarte, entre outros...

sexta-feira, 30 de março de 2012

As Amoras - Eugénio de Andrade





O meu país sabe a amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul

Eugénio de Andrade

PERFILADOS DE MEDO - Alexandre O'Neill





Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

Alexandre O'Neill

terça-feira, 27 de março de 2012

As mãos pressentem - Al Berto















As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar


ergues de novo as cansadas e sábias mãos
tocas o vazio de muitos dias sem desejo e
o amargor húmido das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada


Al Berto

Acordai! - José Gomes Ferreira



Acordai, homens que dormis
A embalar a dor
Dos silêncios vis!
Vinde, no clamor
Das almas viris,
Arrancar a flor
Que dorme na raiz!


Acordai!
Acordai, raios e tufões
Que dormis no ar
E nas multidões!
Vinde incendiar
De astros e canções
As pedras e o mar,
O mundo e os corações...


Acordai!
Acendei, de almas e de sóis,
Este mar sem cais,
Nem luz de faróis!
E acordai, depois
Das lutas finais,
Os nossos heróis
Que dormem nos covais.


ACORDAI!


José Gomes Ferreira
(letra musicada por Fernando Lopes Graça para interpretação coral)

Que amor não me engana - José Afonso



Que amor não me engana
Com a sua brandura
Se da antiga chama
Mal vive a amargura
Duma mancha negra
Duma pedra fria
Que amor não se entrega
Na noite vazia?
E as vozes embarcam
Num silêncio aflito
Quanto mais se apartam
Mais se ouve o seu grito
Muito à flor das aguas
Noite marinheira


Vem devagarinho
Para a minha beira
Em novas coutadas
Junta de uma hera
Nascem flores vermelhas
Pela Primavera
Assim tu souberas
Irmã cotovia
Dizer-me se esperas
Pelo nascer do dia


José Afonso

terça-feira, 20 de março de 2012

Coro da Primavera

Cobre-te canalha
Na mortalha
Hoje o rei vai nu

Os velhos tiranos
De há mil anos
Morrem como tu

Abre uma trincheira
Companheira
Deita-te no chão

Ergue-te ó sol de verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores
Ouvem-se já os clamores
Ouvem-se já os tambores

Livra-te do medo
Que bem cedo
Há-de o sol queimar

E tu camarada
Põe-te em guarda
Que te vão matar

Venham lavradeiras
Mondadeiras
Deste campo em flor

Venham enlaçadas
De mãos dadas
Semear o amor

José Afonso  (poema e música)


http://www.youtube.com/watch?v=fSyg_dETC-Q


domingo, 18 de março de 2012

Ar Livre













Ar livre que não respiro!
Ou são pela asfixia?
Miséria de cobardia
Que não arromba a janela
Da sala onde a fantasia
Estiola e fica amarela!
Ar livre, digo-vos eu!
Ou estamos nalgum museu
De manequins de cartão?
Abaixo! E ninguém se importe!
Antes o caos que a morte...
De par em par, pois então?!
Ar livre! Correntes de ar
Por toda a casa empestada!
(Vendavais na terra inteira,
A própria dor arejada,
- E nós nesta borralheira
De estufa calafetada!)
Ar livre! Que ninguém canta
Ar livre! Que ninguém canta
Com a corda na garganta,
Tolhido da inspiração!
Fora do ventre da mãe
Desligado do cordão!
Ar livre, sem restrições!
Ou há pulmões,
Ou não há!
Fechem as outras riquezas
Mas tenham fartas as mesas
Do ar que a vida nos dá!

Miguel Torga,in "Cântico do Homem"











Há que dizer-se das coisas
o somenos que elas são.
Se for um copo é um copo
se for um cão é um cão.
Mas quando o copo se parte
e quando o cão faz ão ão?
Então o copo é um caco
e um cão não passa dum cão.

Quatro cacos são um copo
quatro latidos um cão.
Mas se forem de vidraça
e logo foram janela?
Mas se forem de pirraça
e logo forem cadela?
E se o copo for rachado?
E se o cão não tiver dono?
Não é um copo é um gato
não é um cão é um chato
que nos interrompe o sono.

E se o chato não for chato
e apenas cão sem coleira?
E se o copo for de sopa?
Não é um copo é um prato
não é um cão é literato
que anda sem eira nem beira
e não ganha para a roupa.

E se o prato for de merda
e o literato de esquerda?
Parte-se o prato que é caco
mata-se o vate que é cão
e escreveremos então
parte prato sape gato
vai-te vate foge cão
Assim se chamam as coisas
pelos nomes que elas são.

Ary dos Santos

sábado, 17 de março de 2012

Na Luz a Prumo









Se as mãos pudessem (as tuas,
as minhas) rasgar o nevoeiro,
entrar na luz a prumo.
Se a voz viesse. Não uma qualquer:
a tua,e na manhã voasse.
E de júbilo cantasse.
Com as tuas mãos,e as minhas,
pudesse entrar no azul,qualquer
azul: o do mar,
o do céu,o da rasteirinha canção
de água corrente. E com elas subisse.
(A ave,as mãos,a voz.)
E fossem chama. Quase.


Eugénio de Andrade

terça-feira, 13 de março de 2012

Antes que seja tarde



Amigo, 
tu que choras uma angústia qualquer 
e falas de coisas mansas como o luar 
e paradas 
como as águas de um lago adormecido, 
acorda! 
Deixa de vez 
as margens do regato solitário 
onde te miras 
como se fosses a tua namorada. 
Abandona o jardim sem flores 
desse país inventado 
onde tu és o único habitante. 
Deixa os desejos sem rumo 
de barco ao deus-dará 
e esse ar de renúncia 
às coisas do mundo. 
Acorda, amigo, 
liberta-te dessa paz podre de milagre 
que existe 
apenas na tua imaginação. 
Abre os olhos e olha, 
abre os braços e luta! 
Amigo, 
antes da morte vir 
nasce de vez para a vida. 

Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos
"