domingo, 27 de novembro de 2011

PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo:
fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz?
E amanhã há bola antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo de chamar o gerente
e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo à saída da pastelaria,
e lá fora – ah, lá fora! – rir  de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta de ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny
















LIBERDADE

A liberdade conhece-se pelo seu fulgor.
Quatro homens livres não são mais liberdade do que um só.
Mas são mais revérbero no mesmo fulgor.
Trocar a liberdade em liberdades é a moeda corrente do libertino

Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime.
Quanto mais perseguido mais perigoso.
Quanto mais livre mais capaz.
Do cadáver dum homem que morre livre pode sair acentuado mau cheiro
– nunca sairá um escravo.
Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa.

Mário Cesariny
ESTE É O TEMPO 

Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
Mar Novo (1958) 

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

QUE É VOAR?

Que é voar?
É só subir no ar,
levantar da terra o corpo, os pés?
Isso é que é voar?
Não.

Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre, leve, independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não-vivência.
E isso é voar?
Não.

Voar é humano
é transitório, momentâneo...
Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:
isso é partir
e não voltar.

Ana Hatherly


POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO 

O medo vai ter tudo 
pernas 
ambulâncias 
e o luxo blindado 
de alguns automóveis 
Vai ter olhos onde ninguém o veja 
mãozinhas cautelosas 
enredos quase inocentes 
ouvidos não só nas paredes 
mas também no chão 
no teto 
no murmúrio dos esgotos 
e talvez até (cautela!) 
ouvidos nos teus ouvidos 

O medo vai ter tudo 
fantasmas na ópera 
sessões contínuas de espiritismo 
milagres 
cortejos 
frases corajosas 
meninas exemplares 
seguras casas de penhor 
maliciosas casas de passe 
conferências várias 
congressos muitos 
ótimos empregos 
poemas originais 
e poemas como este 
projetos altamente porcos 
heróis 
(o medo vai ter heróis!) 
costureiras reais e irreais 
operários 
(assim assim) 
escriturários 
(muitos) 
intelectuais 
(o que se sabe) 
a tua voz talvez 
talvez a minha 
com a certeza a deles 

Vai ter capitais 
países 
suspeitas como toda a gente 
muitíssimos amigos 
beijos 
namorados esverdeados 
amantes silenciosos 
ardentes 
e angustiados 

Ah o medo vai ter tudo 
tudo 
(Penso no que o medo vai ter 
e tenho medo 
que é justamente 
o que o medo quer) 

O medo vai ter tudo 
quase tudo 
e cada um por seu caminho 
havemos todos de chegar 
quase todos 
a ratos Sim 
a ratos 

Alexandre O’Neill
CÂNTICO XIII

Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.

Cecília Meireles
VOO

Alheias e nossas as palavras voam.
Bando de borboletas multicores, as palavras voam
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.

Voam as palavras como águias imensas.
Como escuros morcegos, como negros abutres,
as palavras voam.

Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós,
em redor de nós as palavras voam.
E às vezes pousam.

Cecília Meireles
Liberdade
é também vontade.

Benditas roseiras
que em vez de rosas
dão nuvens e bandeiras.

José Gomes Ferreira
Clarice Lispector,
a senhora não devia
ter-se esquecido
de dar de comer aos peixes
andar entretida
a escrever um texto
não é desculpa
entre um peixe vivo
e um texto
escolhe-se sempre o peixe
vão-se os textos
fiquem os peixes
como disse Santo António
aos textos.

Adília Lopes

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

MORTE AO MEIO-DIA

No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada
em frente
Novembro
é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

o português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
e o colégio do ódio é a patriótica organização

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

o meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e o povo em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer


Ruy Belo

terça-feira, 1 de novembro de 2011



DO POEMA

O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas, vegetação. Nem
tão-pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes -

o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.

Casimiro de Brito -  Telegramas, 1959


A PRESSÃO DOS MERCADOS

Emprestem-me palavras para o poema; ou deem-me
sílabas a crédito, para que as ponha a render
no mercado. Mas sobem-me a cotação da metáfora,
para que me limite a imagens simples, as mais
baratas, as que ninguém quer: uma flor? Um perfume
do campo? Aquelas ondas que rebentam, umas
atrás das outras, sem pedir juros a quem as vê?
É que as palavras estão caras. Folheio dicionários
em busca de palavras pequenas, as que custem
menos a pagar, para que não exijam reembolsos
se as meter, ao desbarato, no fim do verso. O
problema é que as rimas me irão custar o dobro,
e por muito que corra os mercados o que me
propõem está acima das minhas posses, sem recobro.
E quando me vierem pedir o que tenho de pagar,
a quantos por cento o terei de dar? Abro a carteira,
esvazio os bolsos, vou às contas, e tudo vazio: símbolos,
a zero; alegorias, esgotadas; metáforas, nem uma.
A quem recorrer? Que fundo de emergência poética
me irá salvar? Então, no fim, resta-me uma sílaba - o ar -
ao menos com ela ninguém me impedirá de respirar.

Nuno Júdice - Publicado no Jornal de Letras abril de 2011

OS PÁSSAROS E AS ÁRVORES

As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
... Os pássaros começam onde as árvores acabam
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
Deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
Quando o Outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
Mas deixo essa forma de dizer ao romancista
É complicada e não se da bem na poesia
Não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração

Ruy Belo
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Vou-me Embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Manuel BandeiraBandeira a Vida Inteira ", Editora Alumbramento - Rio de Janeiro, 1986



Surge Janeiro frio e pardacento,
Descem da serra os lobos ao povoado
Assentam-se os fantoches em São Bento
E o Decreto da fome é publicado.

Edita-se a novela do Orçamento;
Cresce a miséria ao povo amordaçado;
Mas os biltres do novo parlamento
Usufruem seis contos de ordenado.

E enquanto à fome o povo se estiola,
Certo santo pupilo de Loyola,
Mistura de judeu e de vilão,

Também faz o pequeno “sacrifício”
De trinta contos – só! – por seu ofício
Receber, a bem dele... e da nação.

José Régio