ENQUANTO
Enquanto houver um homem caído de
bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo
com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das
artérias abertas
e correr pelos interstícios das
pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas
minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos
lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de
interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a
saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia
estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e
alumínio
cobrir o mundo com a sombra
escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de
extermínio
os ossos dos homens e as traves das
suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o
mais que se não diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao
desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos
muros da cidade:
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.
António Gedeão, Obra Poética, Lisboa, Ed. João Sá Couto, 2001
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