sábado, 28 de maio de 2011

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração


António Ramos Rosa (1924), in "Viagem Através de uma Nebulosa"

segunda-feira, 23 de maio de 2011

" Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa - salvar a humanidade."
José de Almada-Negreiros, O Livro

terça-feira, 17 de maio de 2011

AS PESSOAS SENSÍVEIS 
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas,
Porém são capazes
De comer galinhas
O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra
"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão"
Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), in Livro Sexto

domingo, 15 de maio de 2011

LISBOA 
 Digo:
«Lisboa»
Quando atravesso — vinda do sul — o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas —
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
— Digo para ver
Sophia de Mello Breyner Andresen 
1977

In Navegações, 1983

sábado, 14 de maio de 2011

As rosas

Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.

Sophia de Mello Breyner Andresen
in Dia do Mar, 1947

terça-feira, 10 de maio de 2011

Rosa
Rosa em verso, rosa em prosa:
Rosa rosa,

Verdadeira, recortada,
sempre votiva é a rosa.
Quem a dá, quem a ostenta,
quem a colhe, quem a inventa,
quem dela – a rosa – se lembra
faz o voto de quebrar
a pessoal solidão.

Se não troco o pão por rosas,
não troco a rosa por pão.

Rosa.
Rosa em verso, rosa em prosa:
rosa, rosa.

Rosa nome, rosa coisa,
rosa flor, rosa rosa,
rosa traço de união.

Rosa fugaz, recolhida
noutra rosa já nascida.
De rosa em rosa é a vida.

Ó rosa breve fulgor,
lampejo na escuridão.

Se não troco o pão por rosas,
não troco a rosa por pão.

Alexandre O’Neill, Coração Acordeão, Lisboa, O Independente, 2004

segunda-feira, 9 de maio de 2011

AMOSTRA SEM VALOR


Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível;
com ele se entretém
e se julga intangível.


Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.


Eu sei que as dimensões impiedosas da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.


António Gedeão (1906-1997), in Máquina de Fogo

sábado, 7 de maio de 2011

FALA A PREGUIÇA

Eu gosto tanto, tanto ,tanto
de estar quieta, muito parada,
de fazer nada, coisa nenhuma,
e de fazer isso, que é não fazer
e de não estar, não ir, também.
Eu cá faço nada e todos
me dizem que faço isso muito bem.

Faço arroz de nada, pudim de nada
(que não é nada, está-se mesmo a ver)
e é tudo muito bom, delicioso,
só por não ser preciso fazer.

Eu faço nada, sou um nadador,
mas não daqueles que nadam mesmo,
O que é cansativo, tão maçador;
é que nadar, cá para mim,
tem um defeito insuportável:
aquele erre que está no fim .

E não digam que não faço nada
porque eu faço isso o mais que posso
e se não faço mais é porque mesmo nada
fazê-lo muito é uma maçada.
Não quero ir. Ainda é cedo.
Que pressa é essa? Não pode ser!
Deixem-me estar porque eu hoje tenho
bastante nada para fazer.

ÁLVARO MAGALHÃES in O Brincador

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Os Meus Livros


Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevo.
Mais vale assim. As vozes desses mortos
Dir-me-ão para sempre.


Jorge Luis Borges, in "A Rosa Profunda"

terça-feira, 3 de maio de 2011

TESTAMENTO
Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos
 
Se eu morrer
quero que a minha filha não se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita
 
Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas de somar
e a descascar batatas
 
Preparem a minha filha
para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu
 
Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras
 ANA LUÍSA AMARAL, Minha Senhora de Quê, Quetzal  Editores, Lisboa, 1999: 61, 62

domingo, 1 de maio de 2011

SOM
Nem soneto nem sonata
Vou curtir um som
Dissonante dos sonidos
Som
Ressonante de sibildos
Som
Sonotinto de sonalgas
Nem sonoro nem sonouro
Vou curtir um som
Mui sonso, mui insolúvel
Som não sonoterápico
Bem insondável, som
De raspante derrapante
Rouco reco ronco rato
Som superenrolado
Com se sona hoje-em-noite
Vou curtir, vou curtir um som
Ausente de qualquer música
E rico de curtição.
Carlos Drummond de Andrade Poesia e Prosa. 5 ed. Rio de Janeiro, Aguilar, 1979. p. 78